quinta-feira, 18 de junho de 2015

CARTA A UM RECÉM-NASCIDO



Chegaste hoje a este mundo que eu tenho para ti. Chegaste hoje, sem conheceres, sem saberes, que tudo o que fiz, foi somar lixo e poluição e pobreza e vergonha e egoísmo e morte e extinção. Chegaste hoje e eu projectei em ti a responsabilidade de tomares conta do mundo que eu destruí. Chegaste hoje e eu coloquei nos teus ombros o peso de resolveres tudo o que eu aniquilei até ao dia em que chegaste, e escondi-me na cobardia de te chamar futuro. E ao chamar-te futuro, exigi que corrijas tudo o que de mau te deixei. É o maior exercício de deslealdade e desrespeito, destruir algo e exigir que alguém vindouro se entregue a salvar o que já está moribundo por minhas mãos.

Preocupo-me em dar-te uma “consciência ecológica” quando, por minhas mãos, o Mar de Aral 
desapareceu, o lince ibérico precisa de uma legislação especial, a Casa Real de Espanha publica fotografias de abates fulgurantes de elefantes, ou o povo Masai corre o risco de ser expulso dos seus territórios porque vão pertencer a uma família real que fará deles uma reserva de caça. E eu digo-te que tu deves reciclar o lixo, usar lâmpadas de baixo consumo e fechares a torneira enquanto escovas os dentes, que ainda não tens.

E eu preocupo-me em dar-te todas estas preocupações. Se a chucha que tu usas é de um material não tóxico, se as tuas fraldas são degradáveis, mesmo quando eu as atiro pela janela do carro ou as deixo numa visita ao Gerês.

Eu ensino-te que o planeta é para preservar, mas também te ensino a relacionares-te com o mundo com uns phones nos ouvidos, com trinta SMS por minuto e com uma alienação em relação a tudo o que é “chato”. É isto que eu te ensino, com a minha condescendência medíocre. É isto que eu te permito, com a minha cobardia para te transmitir valores de respeito, de dignidade, de tolerância. É a minha cobardia de temer que os meus valores não estejam na moda, não sejam os adequados.

Mas eu continuo a dizer que tu és o futuro. Eu continuo a dizer que tu tens que mudar o mundo. O mesmo mundo destruído que eu te entrego hoje, esperando que tu me redimas de tudo o que eu fiz.

Recebo-te hoje, no dia em que nasceste.

Perdoa-me hoje, que viste o legado que te deixei.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Paula dos Santos

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