segunda-feira, 29 de maio de 2017

domingo, 2 de outubro de 2016

quinta-feira, 18 de junho de 2015

COBARDIA


E se eu hoje pudesse... faria do silêncio um grito de indignação e diria a todo o mundo que não me revejo nele. Diria que acho que não pertenço aqui, mas que não sei onde pertenço. E diria também que o mundo não me serve e que não o quero assim. E o mundo acusar-me-ia de arrogância, de pretensão, de soberba.
E se eu hoje pudesse... faria da minha inacção o braço da guerra armada, aniquilando os infames, os pérfidos e os injustos. O mundo chamar-me-ia de fundamentalista, ou de outra coisa qualquer.
E se eu hoje pudesse... hoje não posso porque me vergo à cobardia dos que querem algum conforto:
Hoje não posso, porque me submeto à aceitação dos que me rodeiam.
Hoje não posso, porque me recuso a abandonar o conforto pútrido em que vivo.
Hoje não posso, porque me acanho de denunciar o que de escandaloso vejo acontecer com aquele homem.
Hoje não posso, porque... a minha cobardia é mais confortável.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Paula dos Santos

SUPÉRFLUO


Serei o supérfluo na tua vida,

aquilo de que não necessitas,

mas que usarás, sempre que tudo o que tens,

não te baste.

Serei o bastão que podes usar para sovar o mundo,

sempre que o mundo te seja injusto.

Serei o teu apoio quando não quiseres baixar a bandeira do teu orgulho,

mas precises de ajuda para te ergueres: não direi a ninguém que te ajudei.

Serei o que tu rejeitarás quando a raiva te ensurdecer para as palavras,

e estarei para ti quando a bonança vier.

Serei o teu escudo contra a tempestade, mas serei também o batente da tua dor.

Serei tudo isso, muito mais ou nada, apenas.

Serei eu e nada mais.

Terás a minha mão discreta, para não te fragilizar perante os outros.

Dar-te-ei o apoio subtil que os soldados dão aos generais, sem nunca te retirar os galões, 

sem nunca te deixar vulnerável.

Manter-te-ei orgulhosa de ti e com a altivez que queres que o mundo veja.

Não direi nada a ninguém.

O preço do meu silêncio será ver-te caminhar erecta, vertical, digna.

Serei o supérfluo na tua vida.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Paula dos Santos

CARTA A UM RECÉM-NASCIDO



Chegaste hoje a este mundo que eu tenho para ti. Chegaste hoje, sem conheceres, sem saberes, que tudo o que fiz, foi somar lixo e poluição e pobreza e vergonha e egoísmo e morte e extinção. Chegaste hoje e eu projectei em ti a responsabilidade de tomares conta do mundo que eu destruí. Chegaste hoje e eu coloquei nos teus ombros o peso de resolveres tudo o que eu aniquilei até ao dia em que chegaste, e escondi-me na cobardia de te chamar futuro. E ao chamar-te futuro, exigi que corrijas tudo o que de mau te deixei. É o maior exercício de deslealdade e desrespeito, destruir algo e exigir que alguém vindouro se entregue a salvar o que já está moribundo por minhas mãos.

Preocupo-me em dar-te uma “consciência ecológica” quando, por minhas mãos, o Mar de Aral 
desapareceu, o lince ibérico precisa de uma legislação especial, a Casa Real de Espanha publica fotografias de abates fulgurantes de elefantes, ou o povo Masai corre o risco de ser expulso dos seus territórios porque vão pertencer a uma família real que fará deles uma reserva de caça. E eu digo-te que tu deves reciclar o lixo, usar lâmpadas de baixo consumo e fechares a torneira enquanto escovas os dentes, que ainda não tens.

E eu preocupo-me em dar-te todas estas preocupações. Se a chucha que tu usas é de um material não tóxico, se as tuas fraldas são degradáveis, mesmo quando eu as atiro pela janela do carro ou as deixo numa visita ao Gerês.

Eu ensino-te que o planeta é para preservar, mas também te ensino a relacionares-te com o mundo com uns phones nos ouvidos, com trinta SMS por minuto e com uma alienação em relação a tudo o que é “chato”. É isto que eu te ensino, com a minha condescendência medíocre. É isto que eu te permito, com a minha cobardia para te transmitir valores de respeito, de dignidade, de tolerância. É a minha cobardia de temer que os meus valores não estejam na moda, não sejam os adequados.

Mas eu continuo a dizer que tu és o futuro. Eu continuo a dizer que tu tens que mudar o mundo. O mesmo mundo destruído que eu te entrego hoje, esperando que tu me redimas de tudo o que eu fiz.

Recebo-te hoje, no dia em que nasceste.

Perdoa-me hoje, que viste o legado que te deixei.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Paula dos Santos

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Em cada alvorada


Em cada alvorada,
O sol presta homenagem com o seu sorriso
Às pétalas de rosa orvalhadas.
E a todos os poentes,
O sol despede-se, e chora, baixando o rosto
Esperando avidamente a próxima madrugada.
A gaivota roça o mar,
Docemente, levemente,
Como quem teme tocar
E rejubila de alegria
Quando no seu vôo picado
Sente do alto a maresia.
E o mar, o grande mar
Na serena imensidão
Cala o furor e a vaga,
Silencia calmamente
E espera ternamente
Que a gaivota trave a luta
Corpo a corpo,
Ferozmente,
Com paixão e sem razão.
E o sol que é espectador,
No auge do meio-dia
Vê no mar vaga e furor
E a gaivota em vôo picado
É gaivota e maresia.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Eduardo Bicudo

Ecoponto


          O que é que a terra pode fazer por mim?
          O que é que eu posso fazer pela terra?
          A terra empresta-se-me para me dar de comer.
          Eu retribuo com o meu lixo, para lhe dar de morrer.
          A terra dá-me água, que me dá árvores, que me dão sombra, que me dão ar.
          Eu roubo-lhe a água, mato-lhe as árvores, acabo com a sombra, enveneno o ar.
          E no fim de tudo, quero muito dinheiro, para poder comprar um oásis.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Jorge Ferreira

Livre


Tomou nas mãos o azul,
e misturou-lhe os tons da erva.
Depois bamboleou o corpo,
ora suave, ora fúria
e ficou sentindo o mar.
Juntou o brilho dos olhos
mais a grandeza da alma,
e teve um dia de sol
numa praia inventada.
Tomou em si o que fez,
gostou da obra criada,
e sentiu-se cumprido
perante tudo o que era.

Texto: Maria João Martins
Pintura: Ana Gonçalves

Meninos



I

Voa menino,
Navega nos céus
Semeia sonhos
Faz mundos risonhos
Com os olhos teus.
Constrói um castelo
Com ameias de mel,
Colhe flores em campos de azul.
Zomba dos amores
Ri dos desamores,
Que o mundo é só teu!
Combate os papões
Com o beijo da noite
E enche o teu pequeno peito
Com o rio da alegria,
Quando de manhã receberes
O beijo doce do bom-dia.
Faz do sol teu companheiro
E brinca com o mar,
Sabe que é com as ondas
Que se aprende a navegar.
A história que a areia conta
Ninguém mais sabe contar
E as conchinhas, todas elas
Dizem segredos ao mar.
Voa menino,
Bem alto,
Porque o azul não tem fim
Voa nas asas do vento
E faz-me voar assim.

II

Trazes na mão um pião
E nos olhos uma quimera
Que não te cabe na mão
Que olhos de mel
Os teus são
Reflectem do céu o azul
São de mel, são de mel
Bebo-os eu pela tua mão.
Trazes na mão um palhaço
Que chamaste de Pimpão
E na mão o pião
E o barquinho de papel,
E os berlindes, o cordel,
E aquele segredo só teu,
Que só a ti faz sonhar.
Aquele brinquedo escondido,
Do tamanho de uma pedrinha,
Pequena, pequenininha,
Que uma fada te ofereceu.

III

Tinha uns caracóis de ouro,
Iluminados pelo céu que tinha nos olhos.
Tinha poucos anos, muito poucos.
E tinha muitos sonhos,
Tantos que uma vida inteira e longa não teria.
Tinha nas mãos um pedacinho de papel,
Que amachucou com dedinhos pequenos:
Olha mãe, um barquinho!
Depois amachucou outra vez o papel e sorriu,
Mãe, fiz um barquinho!
A mãe não viu o barquinho e pensou,
São só três anos, não sabe fazer barquinhos.
Ele viu o olhar da mãe e pensou,
A mãe já é crescida,
Não sabe o que é um barquinho.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Manuel Madeira

Solidão



Quando a noite nos envolve, e o papel nos escuta… falamos de solidão!
Persegue-nos um animal, qual fera acossada, ferida, feroz e magoada, que ao mesmo tempo que nos ataca, nos pede que cuidemos dela, porque a dor é dilacerante. A solidão é assim. Um bicho ferido e enraivecido que pede colo.
As feras mais feridas são as mais ferozes, as mais vorazes e as mais meigas e dóceis.
Quando falamos de uma angústia, que nos dá um nó na garganta, falamos de solidão. Falamos de ter e não ter. Falamos de dar e não dar. Falamos de dor, de sofrimento e de amor. Falamos de um peito cheio de tudo contra uma mão cheia de nada.
Quando falamos de solidão, falamos de pessoas próximas que estão longe, falamos de amantes ausentes e, por vezes, falamos de desconhecidos que subitamente se tornam amantes.
Quando falamos de solidão, falamos de noite, de desgaste, de boémia e de álcool. Falamos de nós e contra nós, dos outros e contra os outros.
Quando chega o fim da noite, é a noite que nos ouve, é a noite que nos toca, é a noite que nos ama e que embala a nossa insónia.
Somos só nós e a noite.
Triunfou a solidão.

Texto: Maria João Martins
Fotografia: Domingos Ribeiro